Sustentabilidade não é o suficiente: precisamos de culturas regenerativas
Trecho da versão em português do Design de Culturas Regenerativas, Bambual 2020
A sustentabilidade, por si só, não é uma meta adequada. A palavra sustenta- bilidade em si é inadequada, visto que não nos diz o que estamos realmente a tentar sustentar. Em 2005, depois de passar dois anos a trabalhar na minha tese de doutoramento em design de sustentabilidade, comecei a perceber que o que realmente tentamos sustentar é o padrão subjacente de saúde, de resiliência e de adaptabilidade que mantém este planeta numa condição na qual a vida como um todo pode florescer. Design de sustentabilidade é, em última análise, o design para a saúde humana e planetária (Wahl, 2006b).
Uma cultura humana regenerativa é saudável, resiliente e adaptável; cuida do planeta e da vida com a consciência de que esta é a maneira mais eficaz de criar um futuro próspero para toda a humanidade. O conceito de resiliência está intimamente relacionado à saúde, descreve a capacidade de recuperar funções vitais básicas e de reação a qualquer tipo de colapso temporário ou crise. Quando almejamos a sustentabilidade a partir de uma perspectiva sistémica, tentamos sustentar o padrão que conecta e fortalece todo o sistema. A sustentabilidade trata, antes de tudo, de saúde e resiliência sistémicas em diferentes escalas, desde a local até à regional e à global.
A ciência da complexidade ensina-nos que, como participantes de um sistema ecopsicossocial complexo e dinâmico, sujeito a certos limites bio- físicos, o nosso objetivo deve ser a participação adequada, não a previsão e o controlo (Goodwin, 1999a). A melhor forma de aprender a participação correta é prestar mais atenção às interações e aos relacionamentos sistémicos e, visando apoiar a resiliência e a saúde de todo o sistema, promover diversidade e redundâncias em múltiplas escalas, e para facilitar o surgimento positivo ao atentar para a qualidade das conexões e dos fluxos de informação no sistema. Este livro explora como isto pode ser feito.
■ Usar o Princípio da Precaução
Uma proposta para orientar ações prudentes face à complexidade dinâmica e do “não saber” é aplicar o Princípio da Precaução como um quadro de refe- rências que visa evitar, tanto quanto possível, ações que impactarão negativa- mente a saúde ambiental e humana no futuro. Da “Carta Mundial da Natureza” das Nações Unidas (ONU) em 1982, ao Protocolo de Montreal sobre a Saúde em 1987, à Declaração do Rio em 1992, ao Protocolo de Quioto e ao Rio +20 em 2012, comprometemo-nos a aplicar o Princípio da Precaução várias vezes.
A Declaração de Consenso de Wingspread sobre o Princípio da Precaução afirma: “Quando uma atividade ameaça trazer danos para a saúde humana ou para o ambiente, medidas de precaução devem ser tomadas mesmo que algu- mas relações de causa e efeito não tenham sido cientificamente estabelecidas” (Declaração de Wingspread, 1998). O princípio indica que o ónus da prova de que uma determinada ação não é prejudicial seja daqueles que propõem e realizam a ação, ainda que o costume permita que todas as ações que (ainda) não tiveram seus efeitos potencialmente prejudiciais provada, continuem a funcionar sem escrutínio. Em poucas palavras, o Princípio da Precaução pode ser resumido da seguinte forma: seja precavido face à incerteza. Isto não é o que fazemos.
Embora os grupos de alto nível da ONU e muitos governos nacionais tenham repetidamente considerado o Princípio da Precaução como uma maneira sábia de orientar ações, o quotidiano mostra que é muito difícil de implementar, pois haverá sempre algum grau de incerteza. O Princípio da Precaução também teria o potencial de interromper a inovação sustentável e bloquear novas tecnologias altamente benéficas sob o pretexto de que não pode ser provado com certeza que estas tecnologias não resultarão em efeitos colaterais inesperados e prejudiciais para a saúde humana ou ambiental.
P · Porque não instigar designers, tecnólogos, políticos e planeadores profissionais a avaliar as ações propostas sob o ponto de vista do potencial positivo, sustentador de vida, restaurativo e regenerativo?
P · Porque não limitar a escala de implementação de qualquer inovação aos níveis local e regional até que o seu impacto positivo seja inequi- vocamente demonstrado?
P · Fazer design para a saúde sistémica pode não salvar-nos de efeitos colaterais inesperados e da incerteza, mas apresenta uma rota de tentativa e erro para uma cultura regenerativa. Precisamos ur- gentemente de um Juramento de Hipócrates para o design, para a tecnologia e para o planeamento: não causar dano ou mal! A fim de fazer esta afirmação ética e operacional precisamos de uma intenção salutogénica (geradora de saúde) por detrás de todo o design, tecnologia e planeamento: precisamos projetar para os humanos, para os ecossistemas e para a saúde planetária. Desta forma, podemos deslocar-nos mais rapidamente dos negócios insustentáveis, do busines as usual, para inovações restaurativas e regenerativas que apoiarão a transição para uma cultura regenerativa. Vamos perguntar-nos:
P · Como o design, a tecnologia, o planeamento e as decisões políticas apoiam afirmativamente a saúde humana, comunitária e ambiental?
Precisamos responder ao facto de que a atividade humana, nos últimos séculos e milénios, tem causado dano ao funcionamento saudável de ecossistemas. A disponibilidade de recursos está a diminuir globalmente, enquanto a procura aumenta, à medida que a população humana continua a expandir-se e a corroer as funções dos ecossistemas através de design irresponsável e estilos de vida de consumo desenfreado. Se o desafio de diminuir a procura e o consumo for enfrentado, temos uma chance (ou possibilidade), tão pequena quanto o buraco de uma agulha, de criar uma civilização humana regenerativa. Esta mudança implicará uma transformação na base de recursos materiais da nossa civilização, de recursos fósseis para recursos biológicos renováveis e regenerados, juntamente com um aumento radical na produtividade e reciclagem de recursos. Bill Reed mapeou algumas das mudanças essenciais que serão necessárias para criar uma cultura verdadeiramente regenerativa.
Em vez de causar menos danos ao meio ambiente, é necessário aprender como participar do meio ambiente — usando a saúde de sistemas ecológicos como base para o design. […] A mudança de uma visão de mundo fragmentada para um modelo mental de sistemas abrangentes é o movimento significativo que a nossa cultura deve fazer — delineando e compreendendo as interrelações do sistema vivo de forma integrada. Uma abordagem de base local é uma forma de alcançar esse entendimento. […] O nosso papel, como designers e acionistas, é mudar o nosso relacionamento para um que cria um sistema completo de relacionamentos mutuamente benéficos.
Bill Reed (2007: 674)
Reed denominou os fundamentos para a mudança no modelo mental de “pensamento de sistemas inteiros” e “pensamento de sistemas vivos”, que precisamos para criar uma cultura regenerativa. Nos capítulos 3, 4 e 5, ana- lisaremos estas mudanças necessárias em perspectiva e em algum detalhe. Elas andam de mãos dadas com uma reformulação radical da nossa compreensão de sustentabilidade. Como Bill Reed coloca “Sustentabilidade é uma progressão em direção a uma consciência funcional de que todas as coisas estão conectadas; que os sistemas de comércio, de construção, da sociedade, de geologia e da natureza são na verdade um sistema de relações integradas; e que tais sistemas são co-participantes na evolução da vida” (2007). Uma vez que mudarmos essa perspectiva, podemos entender a vida como “um processo completo de evolução contínua para relacionamentos significativos, mais diversificados e mutuamente benéficos”. A criação de sistemas regenerativos
não é uma mudança simplesmente técnica, económica, ecológica ou social: tem que andar de mãos dadas com uma mudança subjacente na forma como pensamos sobre nós mesmos, nossos relacionamentos uns com os outros e com a vida como um todo.
A Figura 1 mostra as diferentes mudanças de perspectiva à medida que nos movemos do business as usual para uma cultura regenerativa. O objetivo de culturas regenerativas transcende e inclui sustentabilidade. O design restaurativo visa reconstruir a autorregulação saudável em ecossistemas locais, e o design reconciliatório dá o passo adicional de tornar explícito o envolvimento participativo da humanidade nos processos da vida e na união entre natureza e cultura. O design regenerativo cria culturas capazes de contínuas aprendizagens e transformações em resposta, e antecipação, à mudança inevitável. Culturas regenerativas salvaguardam e aumentam a abundância biocultural para as futuras gerações da humanidade e para a vida como um todo.
A “história da separação” atinge os limites da sua utilidade e os efeitos negati- vos resultantes dessa visão de mundo e comportamento começam a impactar na vida como um todo. Ao tornarmo-nos numa ameaça à saúde planetária, aprendemos a redescobrir o nosso íntimo relacionamento com toda a vida. A visão de Bill Reed do design regenerativo para saúde sistémica está em sintonia com o trabalho pioneiro de Patrick Geddes, Aldo Leopold, Lewis Mumford, Buckminster Fuller, Ian McHarg, E.F. Schumacher, John Todd, John Tillman Lyle, David Orr, Bill Mollison, David Holmgren e muitos outros que analisaram o design no contexto da saúde de todo o sistema. Surge uma nova narrativa cultural, capaz de dar à luz e definir uma cultura humana verdadeiramente regenerativa. Ainda não sabemos detalhes sobre a forma como esta cultura manifestar-se-á exatamente, tão-pouco sabemos de todos os detalhes de como sairemos da atual situação de “mundo em crise” para o futuro brilhante de uma cultura regenerativa. No entanto, a aparência desse futuro já está entre nós.
Ao usar os termos “velha história” e “nova história” corremos o risco de pensar nesta transformação cultural como um substituto de uma história por outra. Tal separação em opostos dualistas é, em si mesmo, parte da “narrativa de separação” da “velha história”. A “nova história” não é uma total negação da atual visão do mundo dominante. Inclui tal perspectiva, mas deixa de considerá- -la como a única, abrindo-se à validade e à necessidade de múltiplas formas de conhecimento. Abraçar a incerteza e a ambiguidade faz valorizarmos múltiplas perspectivas sobre a nossa correta participação na complexidade. São perspectivas que dão valor e validade não só à “velha história” da separação, mas também à “história ancestral” da unidade com a Terra e o cosmos. Estas são perspectivas que podem ajudar-nos a encontrar um modo regenerativo de ser humano em profunda intimidade, reciprocidade e comunhão com a vida como um todo, tornando-nos cocriadores conscientes da “nova história” da humanidade.
A nossa inquietação e urgência em tirar conclusões, respostas e soluções apressadas é compreensível, tendo em vista a intensificação do sofrimento indi- vidual, coletivo, social, cultural e ecológico, mas esta tendência de favorecer res- postas em vez de aprofundar as perguntas faz parte da velha história da separação. A arte de inovação cultural transformadora trata, em grande medida, de fazer as pazes com o “não saber” e viver as questões mais profundamente, certificando-nos de que estamos a fazer as perguntas certas, prestando atenção aos nossos relacionamentos, e a como todos nós produzimos um mundo não apenas através do que estamos a fazer, mas através da qualidade do nosso ser. Uma cultura rege- nerativa surgirá da busca por viver novas formas de relacionar-se consigo mesmo, com a comunidade e com a vida como um todo. No cerne da criação de culturas regenerativas está um convite para viver as questões em conjunto.
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Daniel Christian Wahl — Catalisando a inovação transformadora em face de crises convergentes, assessorando no projeto de sistemas regenerativos inteiros, liderança regenerativa e educação para o desenvolvimento regenerativo e regeneração biorregional.
Autor do livro internacionalmente aclamado Designing Regenerative Cultures